sexta-feira, junho 03, 2005
HÁ JUIZES, JUIZES E JUIZES
Nasci numa família de juristas. O meu avô foi advogado e notário, o meu pai delegado do Ministério Público e secretário do Governo Civil, a minha mãe é juiz, eu e a minha filha somos advogados e o meu filho é estudante do 5º ano de Direito.
Enfim, apesar de todos termos cursado Direito, a família acabou por não se especializar em nenhuma profissão específica do ramo.
Talvez, por isso, nunca me tenha reconhecido naquela rivalidade tão típica que hoje existe entre advogados e magistrados. Aliás, nasci e cresci num ambiente completamente avesso a qualquer suspeição, por mínima que fosse, à idoneidade dos magistrados judiciais.
E para além de poder contar hoje, no meu apertado círculo de amigos, com juízes de reconhecido mérito, tenho felizmente a honra de pertencer a uma família onde todos aqueles que seguiram a magistratura judicial chegaram a juízes conselheiros: o meu primo e ilustre penalista Lopes Maia Gonçalves, o meu primo direito Leonardo Dias e, finalmente, a minha mãe.
É, por isso, natural que hoje me doa, particularmente, quando constato que a degradação do sistema judicial a que todos vimos assistindo (e para a qual, diga-se, todos temos contribuído) começa também a afectar a classe dos magistrados, que eu, desde o berço, aprendi a reverenciar.
Mas afinal o que é que os meus avós e os meus pais me fizeram ver de especial num juiz para que eu os tenha em tanta conta?
A resposta é simples e evidente: porque é o juiz quem faz justiça. E essa responsabilidade enorme está obrigatoriamente ligada a duas qualidades indispensáveis ao exercício da função: o bom senso e a preocupação em ser justo. Como costuma dizer, com uma certa graça, o meu primo Maia Gonçalves, «um juiz tem de ser necessariamente um homem bom e sensato. Ponto final. E, se possível letrado.»
Ora, aquilo que uma pessoa atenta começa a constatar é que, à magistratura judicial, começam a aportar não apenas indivíduos com a vocação de juiz, mas também doutrinadores e funcionários públicos.
Qual é a diferença? É que, ao contrário do juiz que procura fazer justiça, o doutrinador procura fazer doutrina e o funcionário público procura despachar processos. Ou seja, do doutrinador sai sempre a solução mais inesperada (para ser inovadora) e do funcionário público a solução mais fácil (para não dar muito trabalho).
Qualquer das duas hipóteses só serve para fazer abalar a fé do cidadão na justiça e nos tribunais. A justiça para ser justiça tem de ser justa. E para ser justa tem de ser inteligível aos olhos do cidadão.
Aqui há uns tempos instaurei, no mesmo dia e no mesmo tribunal, duas acções em tudo idênticas: o mesmo autor, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido. Só variavam os réus: um era o vizinho do lado direito e o outro o vizinho do lado esquerdo. A uma acção foi atribuído o número par e à outra o número ímpar, o que fez com que fossem distribuídas a funcionários diferentes. Por esse motivo, enquanto a “ímpar” foi julgada no prazo de 6 meses, a “par” demorou mais de um ano a ser julgada. Acontece que, apesar de ter sido o mesmo juiz a presidir ao julgamento e a responder aos quesitos, a sentença do processo “par” acabou por ser proferida pelo juiz que o veio substituir. Refira-se ainda que os factos dados como provados nos dois julgamentos foram absolutamente idênticos. No entanto, enquanto a sentença do processo “ímpar” deu razão ao autor, a do processo “par” deu razão aos réus.
Ainda hoje, o meu cliente não percebe por que razão ganhou uma acção e perdeu a outra. E, infelizmente, por mais que me esforce, também eu não consigo encontrar uma explicação plausível que o convença. A não ser que queiramos reduzir as legítimas expectativas do cidadão nos tribunais às expressões «há-de ser o que Deus quiser» ou «há-de ser o que calhar», tão características dos jogos de fortuna e de azar. Mas, nesse caso, vamos ter de deixar de chamar aos tribunais «DOMVS IVSTITIAE».
Santana-Maia Leonardo, in Primeira Linha
Enfim, apesar de todos termos cursado Direito, a família acabou por não se especializar em nenhuma profissão específica do ramo.
Talvez, por isso, nunca me tenha reconhecido naquela rivalidade tão típica que hoje existe entre advogados e magistrados. Aliás, nasci e cresci num ambiente completamente avesso a qualquer suspeição, por mínima que fosse, à idoneidade dos magistrados judiciais.
E para além de poder contar hoje, no meu apertado círculo de amigos, com juízes de reconhecido mérito, tenho felizmente a honra de pertencer a uma família onde todos aqueles que seguiram a magistratura judicial chegaram a juízes conselheiros: o meu primo e ilustre penalista Lopes Maia Gonçalves, o meu primo direito Leonardo Dias e, finalmente, a minha mãe.
É, por isso, natural que hoje me doa, particularmente, quando constato que a degradação do sistema judicial a que todos vimos assistindo (e para a qual, diga-se, todos temos contribuído) começa também a afectar a classe dos magistrados, que eu, desde o berço, aprendi a reverenciar.
Mas afinal o que é que os meus avós e os meus pais me fizeram ver de especial num juiz para que eu os tenha em tanta conta?
A resposta é simples e evidente: porque é o juiz quem faz justiça. E essa responsabilidade enorme está obrigatoriamente ligada a duas qualidades indispensáveis ao exercício da função: o bom senso e a preocupação em ser justo. Como costuma dizer, com uma certa graça, o meu primo Maia Gonçalves, «um juiz tem de ser necessariamente um homem bom e sensato. Ponto final. E, se possível letrado.»
Ora, aquilo que uma pessoa atenta começa a constatar é que, à magistratura judicial, começam a aportar não apenas indivíduos com a vocação de juiz, mas também doutrinadores e funcionários públicos.
Qual é a diferença? É que, ao contrário do juiz que procura fazer justiça, o doutrinador procura fazer doutrina e o funcionário público procura despachar processos. Ou seja, do doutrinador sai sempre a solução mais inesperada (para ser inovadora) e do funcionário público a solução mais fácil (para não dar muito trabalho).
Qualquer das duas hipóteses só serve para fazer abalar a fé do cidadão na justiça e nos tribunais. A justiça para ser justiça tem de ser justa. E para ser justa tem de ser inteligível aos olhos do cidadão.
Aqui há uns tempos instaurei, no mesmo dia e no mesmo tribunal, duas acções em tudo idênticas: o mesmo autor, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido. Só variavam os réus: um era o vizinho do lado direito e o outro o vizinho do lado esquerdo. A uma acção foi atribuído o número par e à outra o número ímpar, o que fez com que fossem distribuídas a funcionários diferentes. Por esse motivo, enquanto a “ímpar” foi julgada no prazo de 6 meses, a “par” demorou mais de um ano a ser julgada. Acontece que, apesar de ter sido o mesmo juiz a presidir ao julgamento e a responder aos quesitos, a sentença do processo “par” acabou por ser proferida pelo juiz que o veio substituir. Refira-se ainda que os factos dados como provados nos dois julgamentos foram absolutamente idênticos. No entanto, enquanto a sentença do processo “ímpar” deu razão ao autor, a do processo “par” deu razão aos réus.
Ainda hoje, o meu cliente não percebe por que razão ganhou uma acção e perdeu a outra. E, infelizmente, por mais que me esforce, também eu não consigo encontrar uma explicação plausível que o convença. A não ser que queiramos reduzir as legítimas expectativas do cidadão nos tribunais às expressões «há-de ser o que Deus quiser» ou «há-de ser o que calhar», tão características dos jogos de fortuna e de azar. Mas, nesse caso, vamos ter de deixar de chamar aos tribunais «DOMVS IVSTITIAE».
Santana-Maia Leonardo, in Primeira Linha