sexta-feira, setembro 23, 2005

 

A MORTE DE GALILEU OU O ELOGIO DA ESTUPIDEZ

A recente medida aprovada pelo Ministério da Educação de ocupar os professores na escola durante as horas não lectivas revela bem o primarismo intelectual dos nossos governantes.

Assim, à primeira vista, a medida parece excelente: os alunos deixam de ter furos, os professores passam a trabalhar como os outros e os pais podem ficar mais descansados por terem os filhos mais vigiados. Só que, à primeira vista, também o sol gira à volta da terra. Pode, aliás, avaliar-se a estupidez de uma medida pelo grau de aceitação pública: em regra, quanto maior for o aplauso mais estúpida é.

Ora, esta medida não só não vai ser benéfica para ninguém como vai agravar substancialmente a qualidade do ensino ministrado nas nossas escolas públicas.
Por um lado, esta medida vai acelerar o processo revolucionário em curso, desde o 25 de Abril, de transformar todos os professores do ensino não universitário em simples monitores, que tem sido o principal cancro do nosso sistema de ensino. Equiparar em funções e estatuto os professores do ensino não universitário tem sido, aliás, o grande sonho dos professores primários e a principal reivindicação dos sindicatos de professores.

Ora, não podendo o professor substituto continuar a unidade que está a ser leccionada pelo seu colega (não conhece a turma, nem a unidade, nem as estratégias, nem o método seguidos pelo seu colega), vai, apenas, durante a hora de substituição, tentar manter os alunos dentro da sala. Esta situação não só não vai dignificar a actividade do professor como vai ser, física e psicologicamente, muito mais desgastante para este do que se tivesse mais uma hora lectiva no seu horário. E a razão é fácil de entender: não só os alunos vão estar mais agitados porque aquela aula, pura e simplesmente, não vai ter quaisquer efeitos para a sua avaliação como também o professor vai ter menos autoridade pelo facto de estar de passagem e não ser professor da turma.
Porque o que é verdadeiramente desgastante no ensino, física e psicologicamente, não é o acto de leccionar mas o ter de aguentar 30 adolescentes, naturalmente rebeldes, fechados numa sala.

Além disso, também não se está a ver um professor a preparar as suas aulas ou a corrigir os seus trabalhos e testes, sem qualquer privacidade e sem meios, em salas com dezenas de professores ou de alunos a conversarem uns com os outros. Com esta medida, o Ministério vai, consequentemente, obrigar os professores mais diligentes e conscienciosos a juntarem-se aos demais, descurando por completo a preparação das suas aulas e aligeirando ao máximo a avaliação escrita.
Com efeito, ninguém espere, tendo em conta o caldo de cultura em que o sistema de ensino está mergulhado, que os conselhos executivos, por sua livre iniciativa, façam uma discriminação positiva, libertando os professores que, por natureza, têm mais trabalho na preparação das aulas, como é o caso dos professores que leccionam o ensino secundário, em particular, e os professores de Línguas e Literatura, em geral (com leitura e análise de obras literárias, com a elaboração de fichas com base em documentos autênticos e com a avaliação da expressão escrita).

Quanto aos pais, esta medida também não os deve tranquilizar: basta terem lido a história da Bela Adormecida. Na verdade, não foi pelo facto de os seus pais terem mandado cortar todos os espinhos do reino que a sua filha se deixou de picar. Pelo contrário, gente tão protegida e vigiada está mais atreita às companhias e influências das fadas más.

Por outro lado, também não é, com certeza, humilhando publicamente toda uma classe profissional, espoliando-a, na praça pública, dos seus direitos e compensações como se não fossem merecidos, que se vai conseguir melhorar a qualidade do ensino público. Até porque não é com vinagre que se apanham moscas...

(continua)



Santana-Maia Leonardo, in Primeira Linha

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