segunda-feira, janeiro 16, 2006
A Presidência da Esquerda
A partir de 1986, a eleição de um novo presidente foi sempre um momento de bipolarização, opondo geralmente antigos líderes de partidos da direita a antigos líderes de partidos da esquerda. Em 1986 e 1996, os partidos de esquerda elegeram dois ex-líderes do PS em confrontos cerrados entre a esquerda e a direita. Depois, reelegeram-nos, em 1991 e em 2001, com largas maiorias, quase sem oposição, em eleições com abstenção elevada. Estas reeleições não nos devem enganar. Nenhum dos presidentes abusou da constituição ou se deixou identificar descaradamente com um partido, mas nenhum foi também verdadeiramente neutro ou equidistante. Nos vinte anos desde 1986, a Presidência da República tornou-se o fundamento da tutela da esquerda na vida política portuguesa.
Conforme era da praxe na cultura da esquerda republicana, os presidentes da esquerda recusaram o presidencialismo. Repetidamente, renunciaram a tentar governar, ou sequer a subordinar o governo à sua orientação – ambições que a Constituição, de qualquer maneira, não lhes consentia. Mário Soares (1986-1996) fez questão de despojar a presidência de quaisquer fumos eanistas. O poder estava nos partidos parlamentares. Não desejava um partido do presidente. A sua Presidência seria apenas uma “magistratura de influência”, moderadora e moderada (no uso do veto e da dissolução), à volta de temas consensuais: “prestígio de Portugal no mundo”; “projecto europeu”; e Timor. Jorge Sampaio (desde 1996), pelo seu lado, prometeu discutir apenas “valores”, sem se atrever a sugerir “políticas concretas”. O presidente, segundo Sampaio, devia limitar-se a recolher e disseminar “informação”; a “decisão” era com o governo. Tudo isto era credível, vindo de um intelectual da esquerda e assessor jurídico, que toda a vida fizera precisamente isso. Com ele, a Presidência seria apenas uma advocacia pacífica.
Isso não os impediu, porém, de controlar a governação. Nunca se conformaram com a ideia de que lhes competia apenas fiscalizar formalidades constitucionais, nem jamais admitiram comportar-se como um órgão de poder dependente do Parlamento. Ao contrário da velha tradição de intolerância da esquerda republicana tiveram de aceitar governos de direita, saídos de eleições legislativas finalmente, depois de 1976, eficientes para produzirem rotações no poder. Os presidentes prestaram-se a colaborar lealmente com os governos, mas não abdicaram de lhes apontar determinados fins, em nome dos quais os foram criticando em declarações públicas ou através do uso do poder de vetar leis. Assim, entre 1986 e 2006, consentiram à direita que governasse frequentemente, mas apenas para alcançar certos objectivos técnicos: o crescimento da riqueza, ou o reequilíbrio das finanças. Prestaram-se a “intervir”, ameaçando com a dissolução, sempre que consideraram que a direita não podia assegurar esses resultados.
Mário Soares, uma vez eleito, desorientou a esquerda. Não dissolveu a Assembleia, onde a direita adquirira uma pequena maioria governamental. Mais tarde, recusou-se a aceitar a alternativa de um governo de socialista e eanistas, com o apoio dos comunistas. Mais do que complacência para com o chefe de governo da direita, Cavaco Silva, movia-o um ódio entranhado ao general Eanes. Desde 1991-1992, sem o perigo do eanismo e da reeleição, Soares aproveitou a mudança de ciclo económico para tentar favorecer uma mudança de ciclo governativo. Começou a denunciar o optimismo oficial e a falar da necessidade de solidariedade e justiça social. Propôs-se encontrar “grandes desígnios” para a nação, supostamente alienada pelo economicismo. Perante os escândalos denunciados pela imprensa escrita e televisão, recuperou a “honradez republicana”. Astuto, farejou uma quebra de vontade e ânimo em Cavaco Silva, e resolveu ajudar no fim do “cavaquismo”. Foi o tempo das “Presidências Abertas”, dos pedidos de fiscalização sobre a constitucionalidade das leis, e da vaga ameaça de dissolução do Parlamento. A direita, acossada, começou a falar de diminuir os poderes da Presidência, nomeadamente o de dissolver livremente o Parlamento.
Os presidentes da esquerda não foram presidentes de partido em sentido estrito, mas de uma área política na medida em que a sua interpretação dos objectivos da sociedade e possibilidades da governação coincidia com essa área política. Ou seja, os presidentes da esquerda não se limitaram a garantir a democracia, mas a concepção que a esquerda tinha da democracia, uma concepção que, aliás, contribuíram para transformar. A crise do socialismo na segunda metade da década de 1980 facilitou-lhes a vida. No caso de Soares, a esquerda não lhe exigiu que defendesse o “socialismo” quando começaram as privatizações das empresas nacionalizadas. Mas ao transformar a esquerda, fazendo-a conformar-se com alguns elementos de iniciativa privada depois dos delírios colectivistas da década de 1970, os presidentes contribuíram também para transformar as direitas. Os presidentes da esquerda não tiveram por objectivo afastar a direita do poder, mas foram fundamentais para reduzir a direita a uma condição tecnocrática, com a qual alguns líderes da direita se conformaram.
Em Dezembro de 2004, a destruição presidencial de um governo de direita com uma maioria parlamentar absoluta mostrou a ilusão do parlamentarismo no regime português. É verdade que o regime português é diferente do regime francês da V República. Mas a Constituição portuguesa permitiu também que o presidente se tornasse o actor de um golpe de estado constitucional, ao serviço de uma parte do espectro político. Viu-se em 1993-1995 e em 2004. Enquanto Guterres, com uma maioria relativa, esteve no governo, Sampaio foi de facto um presidente parlamentarista. Tudo isso deixou de ser verdade quando a direita subiu ao poder. O presidente passou então a opinar, a discordar, a censurar, a bloquear. Pouco saiu das televisões e quase nunca deixou de fornecer frases assassinas aos jornais. Na segunda metade de 2004 soube explorar a divisão nos sectores de opinião de direita para, apesar da solidez do apoio parlamentar, derrubar o governo de Santana Lopes. Mostrou assim que o presidente não tem de se reduzir a uma interpretação formal da situação política. Mostrou ainda outra coisa: que o presidente é sempre mais forte, mesmo que seja menos popular. Jorge Sampaio foi eleito na eleição para órgãos de soberania nacional menos participada desde 1975, com 49,1 por cento de abstenção. Mas o presidente eleito pelo mais pequeno número de votantes desde 1976 serviu para destruir uma maioria parlamentar que tinha tido mais votos do que ele. A escolha de 2 411 000 2 milhões e quatrocentos e onze mil eleitores nas presidenciais de 2001 foi suficiente para anular a escolha de 2 677 000 2 milhões e seiscentos e setenta e sete mil eleitores nas legislativas de 2002.
Só a submissão da direita facilitou aos presidentes da esquerda desempenharem um papel de integradores da comunidade política. Para qualquer solução política governativa, a sintonia com o presidente é pelo menos tão importante como uma maioria parlamentar. Até agora, a esquerda beneficiou disso, e daí o seu paradoxal domínio do debate político, apesar de 13 anos de governos de direita nas últimas duas décadas. O presidente não governa, mas também ninguém governa verdadeiramente sem o presidente. Um presidente serve de facto para muita coisa. A bem dizer, para tudo o que é mais fundamental.
» PARA QUE SERVE UM PRESIDENTE ?
Rui Ramos
in http://www.revista-atlantico.com.pt/
Conforme era da praxe na cultura da esquerda republicana, os presidentes da esquerda recusaram o presidencialismo. Repetidamente, renunciaram a tentar governar, ou sequer a subordinar o governo à sua orientação – ambições que a Constituição, de qualquer maneira, não lhes consentia. Mário Soares (1986-1996) fez questão de despojar a presidência de quaisquer fumos eanistas. O poder estava nos partidos parlamentares. Não desejava um partido do presidente. A sua Presidência seria apenas uma “magistratura de influência”, moderadora e moderada (no uso do veto e da dissolução), à volta de temas consensuais: “prestígio de Portugal no mundo”; “projecto europeu”; e Timor. Jorge Sampaio (desde 1996), pelo seu lado, prometeu discutir apenas “valores”, sem se atrever a sugerir “políticas concretas”. O presidente, segundo Sampaio, devia limitar-se a recolher e disseminar “informação”; a “decisão” era com o governo. Tudo isto era credível, vindo de um intelectual da esquerda e assessor jurídico, que toda a vida fizera precisamente isso. Com ele, a Presidência seria apenas uma advocacia pacífica.
Isso não os impediu, porém, de controlar a governação. Nunca se conformaram com a ideia de que lhes competia apenas fiscalizar formalidades constitucionais, nem jamais admitiram comportar-se como um órgão de poder dependente do Parlamento. Ao contrário da velha tradição de intolerância da esquerda republicana tiveram de aceitar governos de direita, saídos de eleições legislativas finalmente, depois de 1976, eficientes para produzirem rotações no poder. Os presidentes prestaram-se a colaborar lealmente com os governos, mas não abdicaram de lhes apontar determinados fins, em nome dos quais os foram criticando em declarações públicas ou através do uso do poder de vetar leis. Assim, entre 1986 e 2006, consentiram à direita que governasse frequentemente, mas apenas para alcançar certos objectivos técnicos: o crescimento da riqueza, ou o reequilíbrio das finanças. Prestaram-se a “intervir”, ameaçando com a dissolução, sempre que consideraram que a direita não podia assegurar esses resultados.
Mário Soares, uma vez eleito, desorientou a esquerda. Não dissolveu a Assembleia, onde a direita adquirira uma pequena maioria governamental. Mais tarde, recusou-se a aceitar a alternativa de um governo de socialista e eanistas, com o apoio dos comunistas. Mais do que complacência para com o chefe de governo da direita, Cavaco Silva, movia-o um ódio entranhado ao general Eanes. Desde 1991-1992, sem o perigo do eanismo e da reeleição, Soares aproveitou a mudança de ciclo económico para tentar favorecer uma mudança de ciclo governativo. Começou a denunciar o optimismo oficial e a falar da necessidade de solidariedade e justiça social. Propôs-se encontrar “grandes desígnios” para a nação, supostamente alienada pelo economicismo. Perante os escândalos denunciados pela imprensa escrita e televisão, recuperou a “honradez republicana”. Astuto, farejou uma quebra de vontade e ânimo em Cavaco Silva, e resolveu ajudar no fim do “cavaquismo”. Foi o tempo das “Presidências Abertas”, dos pedidos de fiscalização sobre a constitucionalidade das leis, e da vaga ameaça de dissolução do Parlamento. A direita, acossada, começou a falar de diminuir os poderes da Presidência, nomeadamente o de dissolver livremente o Parlamento.
Os presidentes da esquerda não foram presidentes de partido em sentido estrito, mas de uma área política na medida em que a sua interpretação dos objectivos da sociedade e possibilidades da governação coincidia com essa área política. Ou seja, os presidentes da esquerda não se limitaram a garantir a democracia, mas a concepção que a esquerda tinha da democracia, uma concepção que, aliás, contribuíram para transformar. A crise do socialismo na segunda metade da década de 1980 facilitou-lhes a vida. No caso de Soares, a esquerda não lhe exigiu que defendesse o “socialismo” quando começaram as privatizações das empresas nacionalizadas. Mas ao transformar a esquerda, fazendo-a conformar-se com alguns elementos de iniciativa privada depois dos delírios colectivistas da década de 1970, os presidentes contribuíram também para transformar as direitas. Os presidentes da esquerda não tiveram por objectivo afastar a direita do poder, mas foram fundamentais para reduzir a direita a uma condição tecnocrática, com a qual alguns líderes da direita se conformaram.
Em Dezembro de 2004, a destruição presidencial de um governo de direita com uma maioria parlamentar absoluta mostrou a ilusão do parlamentarismo no regime português. É verdade que o regime português é diferente do regime francês da V República. Mas a Constituição portuguesa permitiu também que o presidente se tornasse o actor de um golpe de estado constitucional, ao serviço de uma parte do espectro político. Viu-se em 1993-1995 e em 2004. Enquanto Guterres, com uma maioria relativa, esteve no governo, Sampaio foi de facto um presidente parlamentarista. Tudo isso deixou de ser verdade quando a direita subiu ao poder. O presidente passou então a opinar, a discordar, a censurar, a bloquear. Pouco saiu das televisões e quase nunca deixou de fornecer frases assassinas aos jornais. Na segunda metade de 2004 soube explorar a divisão nos sectores de opinião de direita para, apesar da solidez do apoio parlamentar, derrubar o governo de Santana Lopes. Mostrou assim que o presidente não tem de se reduzir a uma interpretação formal da situação política. Mostrou ainda outra coisa: que o presidente é sempre mais forte, mesmo que seja menos popular. Jorge Sampaio foi eleito na eleição para órgãos de soberania nacional menos participada desde 1975, com 49,1 por cento de abstenção. Mas o presidente eleito pelo mais pequeno número de votantes desde 1976 serviu para destruir uma maioria parlamentar que tinha tido mais votos do que ele. A escolha de 2 411 000 2 milhões e quatrocentos e onze mil eleitores nas presidenciais de 2001 foi suficiente para anular a escolha de 2 677 000 2 milhões e seiscentos e setenta e sete mil eleitores nas legislativas de 2002.
Só a submissão da direita facilitou aos presidentes da esquerda desempenharem um papel de integradores da comunidade política. Para qualquer solução política governativa, a sintonia com o presidente é pelo menos tão importante como uma maioria parlamentar. Até agora, a esquerda beneficiou disso, e daí o seu paradoxal domínio do debate político, apesar de 13 anos de governos de direita nas últimas duas décadas. O presidente não governa, mas também ninguém governa verdadeiramente sem o presidente. Um presidente serve de facto para muita coisa. A bem dizer, para tudo o que é mais fundamental.
» PARA QUE SERVE UM PRESIDENTE ?
Rui Ramos
in http://www.revista-atlantico.com.pt/