terça-feira, fevereiro 28, 2006

 

A ARTE E O ENTULHO

Antigamente, a obra de arte estava ao alcance do discernimento de qualquer pessoa, porque estava directamente relacionada com o conceito de beleza. Era o tempo em que imperava a estética aristotélica, a estética da beleza. E o que distinguia o génio do homem comum era precisamente o facto de aquele conseguir conceber coisas belas, dignas de admiração e que demonstravam talento.

Hoje, porém, já ninguém se atreve a bater palmas ou elogiar o que quer que seja sem antes ouvir a opinião abalizada dos decifradores das obras de arte. Porque, sem a sua opinião, ninguém sabe se está perante uma obra de arte ou uma porcaria qualquer.

Quem já teve a oportunidade de visitar os museus de Arte Moderna que vão proliferando por esse mundo fora, não pode deixar de concluir que é extremamente difícil distinguir as obras de arte expostas de um guarda-chuva esquecido num canto de uma sala ou de um bocado de reboco caído da parede.

Ainda há pouco tempo, no Centro de Artes e Espectáculos da Figueira da Foz, uma obra de arte de Jimmy Durham foi destruída por uma inculta empregada de limpeza que resolveu deitar para o lixo os cacos de um lavatório partido que encontrou no chão e que afinal faziam parte da obra de arte. É que a obra de arte era precisamente isso: um lavatório vulgaríssimo a quem o artista tinha transformado numa obra de arte depois de o partir de um lado com uma marretada. E a obra de arte era constituída pelo lavatório e pelos cacos caídos no chão.

Por sua vez, em Frankfurt, os homens do lixo resolveram atirar para o incinerador a obra de arte de Michael Beutler colocada numa rua da cidade. É certo que a cidade ficou mais limpa, mas o presidente da Câmara ficou ofendidíssimo com os funcionários camarários por não terem reconhecido nuns desperdícios de construção civil uma obra de arte.

No entanto, se esta empregada de limpeza e estes homens do lixo se tivessem cruzado com o Moisés e o David de Miguel Ângelo de certeza que não os confundiriam com um bocado de entulho. O mesmo já não sucederia se os levássemos ao Parque Eduardo VII ver o monumento ao 25 de Abril.

Donde se conclui que, ao contrário do burguês urbano letrado, qualquer homem do lixo ou mulher da limpeza consegue distinguir facilmente uma obra de arte de um monte de pedras.

O culto do criador que hoje se pratica e incentiva serve, na maior parte das vezes e infelizmente, para promover medíocres e dar de comer a comparsas ideologicamente afins.

E para comprovar isto mesmo, o jornal Sunday Times resolveu, recentemente, mandar dactilografar cópias integrais dos romances “Num País Livre” (a obra mais aclamada do prémio Nobel Sir Vidiadhar Surajprasad Naipaul) e “Holiday” (escrito pelo vencedor do «Prémio Booker», em 1974, Stanley Middleston) e enviou-as, sob o pseudónimo de jovens aspirantes que queriam publicar o seu primeiro livro, para avaliação das principais editoras e agentes literários britânicos. Nenhuma das grandes editoras britânicas mostrou interesse na sua publicação.

Ou seja, hoje em dia, o único critério para avaliar a qualidade de uma obra é o nome de quem a assina. Se for X é uma obra de arte; se for Y é uma porcaria, para já não utilizar outra expressão bem mais adequada. O nome faz-se e promove-se na comunicação social a partir da tertúlia de amigos e de certos partidos. Ser do Bloco de Esquerda, por exemplo, é hoje meio caminho andado para o sucesso, tal o peso que este partido tem nos órgãos de comunicação social e no seio da burguesia intelectual. E a partir daqui, o sucesso está garantido, tendo em conta que vivemos num mundo onde as pessoas são criadas, desde o berço, a seguirem as modas como rebanhos de ovelhas.

Aliás, basta olharmos hoje para um ser humano com olhos de ver e um mínimo de senso crítico para ficarmos de boca aberta: como é possível certas pessoas conseguirem sair à rua, depois de se verem ao espelho?

E não faltará mesmo gente a vazar um olho ou a cortar um dedo, no dia em que um anormal qualquer se lembrar de dizer, em voz alta, que isso é fashion.

Santana-Maia Leonardo, in Primeira Linha

Comments:
Caro Tonho
Está visto que de arte é que tu não entendes nada... mas não se pode saber tudo...
Deves visitar mais exposições...
 
O que para si não passa de lixo, para mim (e muitos outros) não é!

É a (lixada da) democracia
 
No post anterior: " -Então, não é verdade que a liberdade de expressão é o fundamento basilar da democracia?"
 
Quem sabe de obras de arte é o xico f. Por isso, antes de pisarem uma bosta, não se esqueçam de perguntar ao xico f., porque pode ser uma obra de arte. Nisso de obras de arte, só ele é que sabe.
 
A liberdade de expressão é o que permite às pessoas expressarem as suas opiniões. E o professor Santana Maia também tem o direito a poder expressar a sua com a qual aliás concordo inteiramente. Uma coisa é o direito de cada um poder escrever e pintar o que quiser, outra coisa completamente diferente é quererem-nos obrigar a venerar isso que escrevem ou pintam como obra de arte apenas porque o xico f. acha que é uma obra de arte. São opiniões diferentes. Ou será que eu (e certamente a maioria dos portugueses) não tenho direito a ter ter a minha opinião e a poder expressá-la se assim o entender? O xico f. tem o direito a ter as opiniões que quiser, mas ao menos que reconheça que eu, o professor Santana Maia e outras pessoas que pensam como eu, também as possamos expressar. Dos professores que tive, o professor Santana Maia foi o que demonstrou ter maiores conhecimentos culturais nos diversos domínios e das diferentes escolas de arte, desde a antiguidade clássica até às correntes actuais. E não só porque estudou mas também porque viu.
Sob a capa do anonimato, todos nós nos podemos assumir como sumidades do que quer que seja. Porque se se soubesse quem são aqueles que se refugiam por detrás do anonimato, a sua presunção ia-se por água abaixo. É também por isso que eu não me identifico.
 
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