quarta-feira, março 08, 2006
UM PAÍS DE CRIMINOSOS
Segundo li nos jornais da especialidade (que são todos, obviamente), Marques Mendes terá dito, num comício eleitoral, que determinado presidente da Câmara era uma pessoa prepotente e mesquinha e que se servia do cargo para perseguir os adversários políticos. Segundo parece, o referido presidente da Câmara, provavelmente com o propósito de demonstrar publicamente que Marques Mendes tem razão, resolveu apresentar queixa crime contra este.
Na verdade, é preciso ser-se mesquinho e prepotente para apresentar uma queixa crime deste teor. Mesquinho na medida em que se sobrevaloriza uma afirmação dita num contexto de luta eleitoral onde o excesso de linguagem, por natureza, não pode deixar de estar presente, sob pena de deixarmos de ser formalmente uma democracia; prepotente, na medida em que usa indevidamente os tribunais com vista não só a vergar o seu adversário político, forçando-o a vir ao chamado beija-mão, mas também e sobretudo porque visa, indirectamente, servir de aviso e de exemplo aos seus humildes súbditos que queiram levantar a crista.
Não sei, obviamente, se as críticas de Marques Mendes são ou não adequadas ao sujeito em causa, mas a forma como este reagiu são um forte indício de que as mesmas são bastante fundamentadas. Sendo certo que, infelizmente, poucos serão os presidentes da Câmara a quem essas críticas não se adequariam. Com efeito, como todos sabemos, por experiência própria, o exercício do poder autárquico tem levado a que pessoas adoráveis, humildes e trabalhadoras se transformem, com o passar dos anos, em autênticos déspotas, para quem o poder e a sua manutenção é justificação para todas as atropelias. Ai de quem critique as suas santidades! E o pior é que não têm a consciência dos monstros em que se transformaram.
Pena é que os nossos tribunais se prestem a ser usados desta forma. A liberdade de expressão é um valor estruturante do Estado de Direito democrático pelo que a utilização abusiva dos tribunais como arma de arremesso no combate político, designadamente para inibir qualquer crítica ao exercício do poder, é absolutamente inadmissível.
Por outro lado, o nosso legislador, ao “democratizar do crime” (hoje, vivemos num país onde, face à actual legislação, somos todos criminosos), acabou por retirar a este aquela conotação negativa que tinha um efeito altamente dissuasor sobre o cidadão comum. Com efeito, ao transformar em crime toda e qualquer ninharia, acabou por transformar em criminosos todos os cidadãos: é o que bebe um copo, é o que conduz sem carta, é o que chama “parvo” a um parvo, é o que dá um estalada num jovem insolente, etc. etc. E até nem é preciso alguém fazer ou dizer o que quer que seja, basta haver quem não o grame, para não se livrar de uma queixa crime e de uma acusação particular.
O nosso sistema judicial é, quanto a este aspecto, bastante contraditório: se, por um lado, peca por um excesso de garantismo relativamente a arguidos acusados dos piores crimes, por outro, permite que qualquer indivíduo sem escrúpulos use o tribunal para perseguir, retaliar e enxovalhar pessoas sérias e honestas que tiveram apenas o azar de se lhe atravessar no seu caminho.
A nossa justiça, ao criminalizar ninharias e ao não exigir, pelo menos, que as acusações particulares sejam acompanhadas pelo Ministério Público, faz com que qualquer indivíduo, desde que lhe apeteça gastar dinheiro, possa usar o tribunal para chatear quem quer que seja. E a desgraçada vítima (que, neste caso é o criminoso), mesmo que venha a ser absolvida, não se livra de gastar umas centenas de contos e de perder vários dias de trabalho à conta da brincadeira. Além disso, a absolvição não é certa porque, neste tipo de crimes, por se tratarem de crimes de pequena importância, os nossos magistrados acabam, muitas vezes, por não serem tão exigentes com a prova com são com os crimes mais graves, com prejuízo, em regra, para o arguido.
Santana-Maia Leonardo, in Primeira Linha
Na verdade, é preciso ser-se mesquinho e prepotente para apresentar uma queixa crime deste teor. Mesquinho na medida em que se sobrevaloriza uma afirmação dita num contexto de luta eleitoral onde o excesso de linguagem, por natureza, não pode deixar de estar presente, sob pena de deixarmos de ser formalmente uma democracia; prepotente, na medida em que usa indevidamente os tribunais com vista não só a vergar o seu adversário político, forçando-o a vir ao chamado beija-mão, mas também e sobretudo porque visa, indirectamente, servir de aviso e de exemplo aos seus humildes súbditos que queiram levantar a crista.
Não sei, obviamente, se as críticas de Marques Mendes são ou não adequadas ao sujeito em causa, mas a forma como este reagiu são um forte indício de que as mesmas são bastante fundamentadas. Sendo certo que, infelizmente, poucos serão os presidentes da Câmara a quem essas críticas não se adequariam. Com efeito, como todos sabemos, por experiência própria, o exercício do poder autárquico tem levado a que pessoas adoráveis, humildes e trabalhadoras se transformem, com o passar dos anos, em autênticos déspotas, para quem o poder e a sua manutenção é justificação para todas as atropelias. Ai de quem critique as suas santidades! E o pior é que não têm a consciência dos monstros em que se transformaram.
Pena é que os nossos tribunais se prestem a ser usados desta forma. A liberdade de expressão é um valor estruturante do Estado de Direito democrático pelo que a utilização abusiva dos tribunais como arma de arremesso no combate político, designadamente para inibir qualquer crítica ao exercício do poder, é absolutamente inadmissível.
Por outro lado, o nosso legislador, ao “democratizar do crime” (hoje, vivemos num país onde, face à actual legislação, somos todos criminosos), acabou por retirar a este aquela conotação negativa que tinha um efeito altamente dissuasor sobre o cidadão comum. Com efeito, ao transformar em crime toda e qualquer ninharia, acabou por transformar em criminosos todos os cidadãos: é o que bebe um copo, é o que conduz sem carta, é o que chama “parvo” a um parvo, é o que dá um estalada num jovem insolente, etc. etc. E até nem é preciso alguém fazer ou dizer o que quer que seja, basta haver quem não o grame, para não se livrar de uma queixa crime e de uma acusação particular.
O nosso sistema judicial é, quanto a este aspecto, bastante contraditório: se, por um lado, peca por um excesso de garantismo relativamente a arguidos acusados dos piores crimes, por outro, permite que qualquer indivíduo sem escrúpulos use o tribunal para perseguir, retaliar e enxovalhar pessoas sérias e honestas que tiveram apenas o azar de se lhe atravessar no seu caminho.
A nossa justiça, ao criminalizar ninharias e ao não exigir, pelo menos, que as acusações particulares sejam acompanhadas pelo Ministério Público, faz com que qualquer indivíduo, desde que lhe apeteça gastar dinheiro, possa usar o tribunal para chatear quem quer que seja. E a desgraçada vítima (que, neste caso é o criminoso), mesmo que venha a ser absolvida, não se livra de gastar umas centenas de contos e de perder vários dias de trabalho à conta da brincadeira. Além disso, a absolvição não é certa porque, neste tipo de crimes, por se tratarem de crimes de pequena importância, os nossos magistrados acabam, muitas vezes, por não serem tão exigentes com a prova com são com os crimes mais graves, com prejuízo, em regra, para o arguido.
Santana-Maia Leonardo, in Primeira Linha