segunda-feira, maio 22, 2006
Genética, preconceito e ditadura
Há assuntos que nos são sucessivamente impostos pela imprensa. Sem relevância prática ou significado real, vêm à actualidade por manifesto enviezamento dos jornalistas. A homossexualidade é um desses. Uma questão menor de costumes, para mais do foro pessoal, não mereceria atenção especial no meio dos graves problemas actuais se não existisse quem insiste em a impor.
Desta vez a ocasião foi um estudo sueco, citado na prestigiada revista americana Proceedings of the National Academy of Sciences, a que a nossa imprensa deu larga cobertura (Destak, 10 de Maio; SIC Notícias, 13 de Maio, etc.). Segundo as notícias, essa análise demonstra a "tendência homossexual determinada à nascença" e que a orientação sexual é genética.
Basta olhar para o conteúdo para notar que o trabalho citado não prova nada disso. Como de costume, os títulos pouco têm a ver com a realidade. O estudo, bastante limitado e preliminar, apenas analisou a reacção cerebral de algumas (poucas) pessoas a odores de hormonas. O fundo do problema mantém-se.
Apesar destes esforços de manipulação, a atitude sexual está longe de ser um instinto acéfalo absolutamente incontrolável. Cada um de nós, pessoas racionais, continua a poder determinar a sua vida de forma autónoma.
Mas o aspecto interessante nunca foi a ciência, mas o propósito e a interpretação destas notícias. Partamos por isso do princípio de que aquilo que os nossos jornais dizem é verdade. Vamos assumir, para efeitos argumentativos, que a homossexualidade é apenas um assunto genético, sem qualquer influência comportamental ou escolha própria. O que é que tal significaria para a sua avaliação?
Imagine que amanhã se descobria que existe um gene que determina o comportamento violento, preguiçoso ou racista de certas pessoas. Será que a sociedade iria passar a aceitar e recomendar essas práticas? O que aconteceria certamente é que elas seriam consideradas "doenças genéticas", como tantas outras consequências indesejadas que sabemos virem dos nossos cromossomas. Mas nenhum de nós alteraria a sua opinião (ou preconceito, como diz a imprensa) contra a violência ou o racismo por causa dessa descoberta.
Isto significa que, quanto à questão valorativa, estas investigações são irrelevantes. A atitude perante a homossexualidade ou o racismo depende de uma posição moral, ideológica de fundo, o tal preconceito.
Os resultados científicos, que são importantes para compreender a questão, não chegam para a avaliar. Sabemos há décadas que o mongolismo está impresso nos genes, mas isso não o torna bom.
O problema, de facto, é moral, não médico. Qual então a consequência de dizer que a homossexualidade é (se fosse) só genética?
Até 1973 a Associação Americana de Psiquiatria incluía a homossexualidade no catálogo das doenças do foro psiquiátrico. Quando foi retirada, isso constituiu uma grande vitória para aqueles mesmos que agora se esforçam por demonstrar que ela, afinal, é uma doença genética.
Claro que não dizem que é uma doença. Pelo contrário, pretendem demonstrar (sem o conseguirem) que a homossexualidade é "natural". Mas uma doença é algo de natural, tão natural como a saúde. Aquilo que nos leva a considerar certas coisas naturais como doenças e outras como saudáveis é a nossa opinião de fundo sobre elas. É aí, e não na sua naturalidade, que reside o verdadeiro problema. Há cem anos o racismo era normal, e a homossexualidade aberrante. Hoje inverteram-se as situações. Mas aqueles que, desde sempre, repudiaram ambas são considerados preconceituosos, antes quanto à primeira, agora quanto à segunda.
A visão milenar da Igreja Católica considera a homossexualidade como "depravação grave... intrinsecamente desordenada", mas acolhendo as pessoas com tendências homossexuais com "respeito, compaixão e delicadeza" (Catecismo da Igreja Católica, 2357-8). Por que razão esta posição, que está muito mais profundamente justificada e doutrinalmente elaborada que qualquer outra, é chamada um "preconceito do Vaticano" (SIC, loc. cit.), mas a oposta não é um preconceito dos media?
Todos partimos de uma atitude moral para julgar o mundo. Por que razão algumas são aceitáveis e outras preconceitos? Neste tempo tolerante, cada um assume as suas posições e respeita as dos outros. Mas a imprensa, na sua proverbial imparcialidade, citando estudos que não entende, ataca arrogantemente umas e exalta outras. Esta é a feroz ditadura mediática em que vivemos.
João César das Neves
naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt
Professor universitário
dn.sapo.pt
Desta vez a ocasião foi um estudo sueco, citado na prestigiada revista americana Proceedings of the National Academy of Sciences, a que a nossa imprensa deu larga cobertura (Destak, 10 de Maio; SIC Notícias, 13 de Maio, etc.). Segundo as notícias, essa análise demonstra a "tendência homossexual determinada à nascença" e que a orientação sexual é genética.
Basta olhar para o conteúdo para notar que o trabalho citado não prova nada disso. Como de costume, os títulos pouco têm a ver com a realidade. O estudo, bastante limitado e preliminar, apenas analisou a reacção cerebral de algumas (poucas) pessoas a odores de hormonas. O fundo do problema mantém-se.
Apesar destes esforços de manipulação, a atitude sexual está longe de ser um instinto acéfalo absolutamente incontrolável. Cada um de nós, pessoas racionais, continua a poder determinar a sua vida de forma autónoma.
Mas o aspecto interessante nunca foi a ciência, mas o propósito e a interpretação destas notícias. Partamos por isso do princípio de que aquilo que os nossos jornais dizem é verdade. Vamos assumir, para efeitos argumentativos, que a homossexualidade é apenas um assunto genético, sem qualquer influência comportamental ou escolha própria. O que é que tal significaria para a sua avaliação?
Imagine que amanhã se descobria que existe um gene que determina o comportamento violento, preguiçoso ou racista de certas pessoas. Será que a sociedade iria passar a aceitar e recomendar essas práticas? O que aconteceria certamente é que elas seriam consideradas "doenças genéticas", como tantas outras consequências indesejadas que sabemos virem dos nossos cromossomas. Mas nenhum de nós alteraria a sua opinião (ou preconceito, como diz a imprensa) contra a violência ou o racismo por causa dessa descoberta.
Isto significa que, quanto à questão valorativa, estas investigações são irrelevantes. A atitude perante a homossexualidade ou o racismo depende de uma posição moral, ideológica de fundo, o tal preconceito.
Os resultados científicos, que são importantes para compreender a questão, não chegam para a avaliar. Sabemos há décadas que o mongolismo está impresso nos genes, mas isso não o torna bom.
O problema, de facto, é moral, não médico. Qual então a consequência de dizer que a homossexualidade é (se fosse) só genética?
Até 1973 a Associação Americana de Psiquiatria incluía a homossexualidade no catálogo das doenças do foro psiquiátrico. Quando foi retirada, isso constituiu uma grande vitória para aqueles mesmos que agora se esforçam por demonstrar que ela, afinal, é uma doença genética.
Claro que não dizem que é uma doença. Pelo contrário, pretendem demonstrar (sem o conseguirem) que a homossexualidade é "natural". Mas uma doença é algo de natural, tão natural como a saúde. Aquilo que nos leva a considerar certas coisas naturais como doenças e outras como saudáveis é a nossa opinião de fundo sobre elas. É aí, e não na sua naturalidade, que reside o verdadeiro problema. Há cem anos o racismo era normal, e a homossexualidade aberrante. Hoje inverteram-se as situações. Mas aqueles que, desde sempre, repudiaram ambas são considerados preconceituosos, antes quanto à primeira, agora quanto à segunda.
A visão milenar da Igreja Católica considera a homossexualidade como "depravação grave... intrinsecamente desordenada", mas acolhendo as pessoas com tendências homossexuais com "respeito, compaixão e delicadeza" (Catecismo da Igreja Católica, 2357-8). Por que razão esta posição, que está muito mais profundamente justificada e doutrinalmente elaborada que qualquer outra, é chamada um "preconceito do Vaticano" (SIC, loc. cit.), mas a oposta não é um preconceito dos media?
Todos partimos de uma atitude moral para julgar o mundo. Por que razão algumas são aceitáveis e outras preconceitos? Neste tempo tolerante, cada um assume as suas posições e respeita as dos outros. Mas a imprensa, na sua proverbial imparcialidade, citando estudos que não entende, ataca arrogantemente umas e exalta outras. Esta é a feroz ditadura mediática em que vivemos.
João César das Neves
naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt
Professor universitário
dn.sapo.pt