quarta-feira, maio 24, 2006

 

A LEI É DURA

No último ano, houve várias pessoas que me procuraram no escritório com multas de trânsito que consideravam absolutamente injustas e que justificavam com aquele argumento tão típico dos portugueses de que andavam a ser perseguidas pelas autoridades. E todas elas tinham uma história pessoal mal resolvida com o autuante com que pretendiam justificar a autuação.

Os portugueses, diga-se de passagem, são o povo mais parecido com os judeus, no que respeita a perseguições. São perseguidos por toda a gente: pela polícia, pelos tribunais, pelos árbitros, pelo patrão, pelos credores... Encarei, por isso, com naturalidade o facto de os autuados se queixarem de, também eles, andarem a ser perseguidos pelas autoridades.

Como todos sabemos, no que concerne às multas de trânsito, é extremamente difícil ao putativo infractor demonstrar a sua razão, uma vez que o auto faz fé em juízo, o que significa que cabe ao autuado (e não ao autuante) o ónus de provar que não cometeu a infracção, o que torna esta uma tarefa digna de Hércules.

Mas compreende-se que assim seja. Por um lado, a multa de trânsito não acarreta aquela desvalor social que arruina e destrói o bom nome, a consideração e a imagem pública de um cidadão, como acontece com o crime; por outro lado, a não ser assim, só passaria a ser sancionado por infringir o Código da Estrada quem quisesse uma vez que o sistema seria incapaz de dar resposta às solicitações. Mesmo assim, já é o que é, imagine-se como seria se fosse ao contrário…

No entanto, este sistema pressupõe necessariamente que os agentes da autoridade sejam pessoas correctas e que não usem o distintivo para outros fins que não seja o de cumprir e fazer cumprir a lei, com isenção e bom senso. Ou seja, que não usem o distintivo, designadamente, para fazer retaliações ou justiça pelas próprias mãos.

E bom senso, esclareça-se, é precisamente o contrário do que resulta da célebre máxima latina «dura lex, sed lex» (a lei é dura mas é a lei). Não há nada mais injusto ou revelador de menos bom senso do que a aplicação cega da lei, fonte permanente de injustiça.

Até aqui, certamente, poucas serão as pessoas que discordarão de mim.

Ora, não fosse o facto de vivermos em Portugal e dos agentes da autoridade também serem portugueses e tudo seria claro como a água. Acontece que, se os autuados são portugueses, os autuantes também são.

Está, pois, na hora de regressarmos ao ponto de partida deste artigo.

Qual era, então, a infracção cometida por essas tais pessoas (várias) que alegavam que andavam a ser perseguidas pelos autuantes?

A infracção ao artigo 25º do Código da Estrada que preceitua o seguinte: «Sem prejuízo dos limites máximos de velocidade fixados, o condutor deve moderar especialmente a velocidade», à aproximação das passagens de peões, de escolas, hospitais, creches, de aglomerações de pessoas ou animais, nas localidades, nos troços em mau estado, nas descidas, etc.

Enfim, todos eles foram autuados porque não seguiam a velocidade especialmente moderada. Não significa isto, note-se, que todos eles não seguissem a velocidade moderada, só que, segundo o olho clínico do autuante, não era especialmente moderada.

Ora, uma coisa parece, desde logo, evidente: deixar que o “especialmente” a que se refere o artigo 25º do CE seja aferido “a olho”, segundo o critério altamente subjectivo do polícia, é escancarar a porta à arbitrariedade, na medida em que o “olho” do polícia não poderá deixar de ser influenciado, sobretudo nas terras pequenas, pelas relações pessoais que este vai criando com os diferentes condutores.

E a ser assim, só por pura hipocrisia poderíamos continuar a dizer que a lei é igual para todos. Porque uma lei aplicada a “olho” é sempre especialmente dura para uns e especialmente moderada para outros.


Santana-Maia Leonardo, in Primeira Linha

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